sábado, 17 de setembro de 2011

Crônica: 17.09.11

  12 anos era uma idade tenra demais para expressar tudo que ela já havia vivenciado. Fruto de um casamento fadado ao fracasso antes mesmo do "quer namorar comigo?", carregava sobre os ombros a culpa de ser o elo entre aqueles dois indivíduos perfeitamente incompatíveis. Sua mãe, psicologicamente instável após todos os golpes que havia sofrido da vida. Seu pai, um ex-alcóolatra que se rendia a qualquer minissaia e que havia jogado todo o dinheiro reservado para assegurar o futuro da filha em apartamentos e carros para prostitutas.
  “Desgraçado, ordinário, amaldiçôo o dia em que te conheci!”. Foi o que esbravejou a mãe da garota após agredir o marido e partir de casa, pela sétima vez naquela semana.
  Escutando a discussão de seu quarto, a garota começou mais uma vez a chorar copiosamente. Tentava, porém, disfarçar o choro, para não chamar a atenção de ninguém. Aquilo tudo era culpa sua, era o que ela pensava. Não fosse seu nascimento, sua mãe poderia ter dado continuidade à carreira brilhante que teria tido no campo da neurocirurgia e não teria ficado presa a um marido como seu pai.
  Aquela ideia, então, começou a tomar forma em sua mente mais uma vez. Um tanto perturbadora, mas, sim, seria a solução para todos os problemas!!! Começou a pensar (ou, melhor dizendo, delirar) sobre como seria mágico simplesmente deixar de existir. Sem mais brigas entre seus pais, sem mais insônia por dias seguidos, sem mais cicatrizes decorrentes dos surtos bipolares de sua mãe, sem mais pesadelos com o caminhão que havia tirado a vida de seus dois melhores amigos (e, por pouco, não a sua) ou com o suicídio do irmão destes, sem mais ter que aturar o bullying na escola sobre seu peso ou sobre suas notas. Em suma: o fim do sofrimento.
  O plano estava traçado. E, assim que ouvisse o som do carro de seu pai partindo em busca de sua mãe – como era costumeiro – o colocaria em prática.
Cochilou um pouco enquanto esperava. Acordou às 3h da manhã. O horário do acidente no qual, estranhamente, sempre despertava, não importa o quão pesado fosse seu sono no momento anterior.
Nenhum ruído estava sendo produzido em casa. Ou seus pais ainda não haviam retornado ou já haviam resolvido a rusga da noite. Apostando na primeira alternativa, a mais plausível, rumou para a cozinha. Pegou a faca com a lâmina mais afiada que pôde encontrar.
Hesitou. Não sabia como fazer aquilo.
Por fim, a obstinação venceu. Intuitivamente, perfurou o pulso em sentido vertical. Não sentiu dor; mas, assim que viu o filete de sangue escorrer, largou a faca com estrépito no piso de parquê, assustada.
 Desorientada, abriu a torneira em desespero e tentou extinguir o sangue que só fazia escorrer mais. Lágrimas começaram a transbordar de seus olhos. Sua visão ficou nublada.. Uma fraqueza nos joelhos fez com que tombasse no chão. Puxou um pano de prato, enrolando-o apertado ao redor do pulso, e se encolheu em um canto da parede mais próxima. Não conteve os soluços altos que sobrevieram ao choque. Sua dor vocalizada preencheu o silêncio da casa. O que estava fazendo, afinal de contas? Será que havia enlouquecido? O que havia se tornado? Qual era o seu problema? Sentiu vontade de sumir, de ficar reclusa no subterrâneo.
  Luzes foram acesas. Seus pais vieram correndo ver o que havia acontecido. Assim que perceberam o que a garota tentara fazer, recebendo a intensidade da dor em seu olhar, sua mãe levou as mãos até a boca e correu até a filha. Abrançando-a como não havia feito em muitos anos, chorou copiosamente, ao mesmo tempo beijando a testa da garota e murmurando “me desculpa, me desculpa” incessantemente. Seu pai empalideceu e tombou sobre uma cadeira, incrédulo.
  Na manhã seguinte e pelos anos posteriores a ela, os pais da menina começaram a vigiá-la constantemente, levando-a a especialistas e tratando-a com o maior nível de atenção possível.
  Entretanto, o contexto essencial não mudou. Nem a dor dela, que apenas cresceu.
  Hoje faz seis anos desde meu último encontro cara-a-cara com aquela garota. Mas, de vez em quando, ainda consigo enxergá-la vagando pelos recônditos de minha mente, esperando uma oportunidade de reemergir. Estou com medo de que ela consiga.

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